O não-lugar dos sobreviventes de estupro dentro do debate sobre o mesmo.

A falsa equivalência entre o medo e vivência.

Cena do clipe "Til It Happens to You", de Lady Gaga, sobre estupro nas universidades americanas

A cada 11 minutos, uma pessoa é estuprada no Brasil.
  Na manhã desta quarta-feira um dos agressores publicou em seu Twitter o vídeo registrando um estupro coletivo de uma menor de idade. A internet se mobilizou! Porém não tão positivamente quanto fora a intenção.
  Links do vídeo, prints de conversas entre os estupradores e descrições do ocorrido rapidamente foram divulgadas; tornando-se de fácil encontro paras mãos de misóginos ou do ciclo de conhecidos da garota, que não saberemos como reagiu. O trauma que ela sofreu? Será agravado pela exposição. Tamanha exposição que fez com que em dois dias o nome e rosto dela estampasse as redes sociais, a história de sua vida um jornal nacionalmente reconhecido – como se algo pudesse justificar o ocorrido. Teremos todos culpa como aqueles 33 homens.
  Também se tornou impossível ser sobrevivente em uma rede social sem cruzar com algum gatilho - muitos de nós tivemos crises.
  E novamente se comprovou que o debate sobre estupro e pedofilia não enxerga a necessidade de nos considerar ou ouvir, tirando de nós a única coisa que julgávamos ser verdadeiramente nossa – nossas histórias.

Oi, eu fui estuprada. Não junto com a Fulana, não pela minha “sororidade” com a dor da Beltrana. Sozinha. Sozinha com um homem 50 anos mais velho do que eu, então criança – vejo seu rosto e cabelos grisalhos ao escrever isso. Uma narrativa e mil complicações que pertencem a mim, e não a sua empatia.
  O estupro não está tão longe quanto se pensa. Você conhece sobreviventes de abuso sexual. Talvez vocês sejam amigos, talvez seja a secretária do seu consultório médico. Estamos por todos os lugares. Quantos de nós passamos de estatísticas para você?
  Essa insistência em enxergar o estupro como algo distante – a cena de terror na rua escura com o desconhecido violento - ajuda apenas ao agressor. Sendo a maioria dos abusadores conhecidos de suas vítimas – parentes, amigos, namorados. Sendo os homens ensinados a considerar o silêncio um sim, que o consentimento é conquistado através de insistência ou uma dose de álcool. Porém se você não pode negar, não está verdadeiramente concordando.
“Bem, mas o que você estava vestindo? O quão alto gritou não?”
  Contudo o estupro é tão próximo que toda vez que se profere seu nome em uma sala de aula, uma aluna encolhe em seu flashback. Nós vemos. Vocês não. Vemos como toda piada e culpabilizão atinge ao menos um de nós.
  Vemos a relutância em nos abrirmos, pois tantos já não acreditaram em nós.
  Vemos a revolta nos olhos do nosso parceiro quando pela primeira vez, com tremenda dificuldade, contamos nossa história. Meses depois ele grita conosco por um toque dele funcionar como um gatilho e nos fazer pedir para recuasse, afinal, a culpa é nossa por não conseguir confiar. A culpa eles sempre afirmam ser nossa.
  Vemos a mídia retratando as mulheres estupradas com Síndrome de Estocolmo (que já deveria ter sido abandonada pela psiquiatria, junto com a histeria) ou vingativas. Sobreviventes de pedofilia quase não falam, foram “quebrados” pelo resto da vida.
  Vemos os olhares de pena quando passamos, resumindo-nos a uma história triste.
  Também vemos a falta de hesitação em se apropriarem da nossa dor e das nossas narrativas para algum debate feminista. É para nós, não é mesmo? E quando as marcas deixadas pelo estupro de uns se curam, ficam as da exposição e das falas sem qualquer consideração.
  O “nós” é de sobrevivente. Não de todas as mulheres. Porque assim como (felizmente) nem toda mulher tem uma história, consideráveis garotos têm.
  O medo que todas sentiram deve sim ser abordado! Mas não é o suficiente para que entenda o que a moça carioca tem passado. Cada estupro é seu caso isolado. E deixa marcas físicas e psicológicas distintas.


O debate sobre estupro é necessário, mas já passou o momento em que verdadeiramente considere sobreviventes. 

"A piada do estupro"

De Belissa Escobedo e Rhiannon McGavin



“Toc toc”
“Quem é?”
“Piada com estupro”
“Piada com estupro quem?”
“Piada com estupro que não tem a menor graça”

Não se preocupe, nós somos boas vítimas! Não vamos chorar alto demais ou exigir sua atenção ou pedir alertas de gatilho.

  Homens gostam de usar a desculpa “garotos também são estuprados” quando ouvem mulheres falando sobre suas experiências pessoais.
 Primeiramente,
“garotos são estuprados” deveria ser sua própria oração, se você está apenas olhando para o trauma deles como uma oportunidade de silenciar mulheres sobreviventes, então você é um babaca.
 Em segundo lugar, todos os homens sobreviventes que NÓS conhecemos, te dariam um soco na cara por dizer isso.

  E seus amigos que não são sobreviventes não conseguem se simpatizar com você até terem ouvido todos os detalhes sórdidos... “Por favor, descole seu pornô em outro lugar”.
  E quando você consegue a empatia delas soa como
“eu já levei cantada na rua então entendo perfeitamente!” “alguém pisou no meu pé semana passada, foi um homem, eu me senti tão invadida!”.

  E aos garotos que escrevem poemas como “Às garotas estupradas, não se preocupem. Existem caras legais por aí! A LUZ NO FIM DE UM TÚNEL TÃO ESCURO”. Eles vão segurar sua mão no tribunal e tudo mais! Obrigada à Deus por em algum dia de meu futuro eu arranjar um pinto inteligente!
  Sabem, esses poetas te dirão: “Violetas estão florescendo nas sombras embaixo dos seus olhos”. Não são violetas, é pele. Eu sei que é pele. É uma boa pele! Vai continuar sendo pele independentemente das metáforas que você colocar nela.

  Você estará lá quando eu chorar (até que meus olhos fiquem inchados e vermelhos)
  Você não vai rasgar minha lingerie de renda (porque ela foi cara, e faz eu me sentir como se eu
valesse algo)
  Assim que descobrir que a única coisa que entra na minha garganta é um tubo de alimentação na área psiquiátrica do hospital, você irá embora.

  E se você realmente quer um relacionamento curador como você conversa sobre isso se a linguagem está contra você?
  “Ei, quer transar?” “Fuder” “Me chupa!”
  TUDO É TÃO VIOLENTO!

  Como flertar com uma/um sobrevivente de estupro: se aproxime lentamente e com cuidado, não faça qualquer movimento brusco ou barulhos altos.
  “Oi, gato, eu tenho ansiedade, depressão, stress pós-traumático e uma baita insegurança sexual”
  “Quer passar em casa e segurar o meu cabelo enquanto eu vomito?”

  E então existem algumas feministas que pensam terem a posse de NOSSAS poesias e narrativas, porque, parafraseando-as “Na sociedade patriarcal todas as mulheres estão constantemente ameaçadas pelo estupro”.
  “O que isso nos torna?”
  “Calma, Belissa, EU ESTOU ME TORNANDO UMA ESTÁTISTICA”
  “Santo spray de pimenta, Batman!”
  “SÓ CONSIGO ENXERGAR EM BINARISMO! OS NÚMEROS UM PARECEM PÊNIS”
  Rápido, você precisa se recompor para falar sobre
as Marchas das Vadias.

  Realmente, nada ajuda mais sobreviventes de estupro de todos os gêneros, etnias ou classe econômicas do que brancas ricas andando por aí seminuas enquanto colaboram com a polícia.
  Porque os policiais historicamente são tão bons em
apoiar vítimas e pegar estupradores.

  Já estou farta das frases de efeito das Marchas das Vadias também.
“Não me trate mal por ser vadia” Que tal não me chame de vadia NUNCA?
 “Homens de verdade não estupram!” Ah, merda, deve ter sido um fantasma então!
 “Consentimento é
sexy” CONSENTIMENTO É SEXY? LINGERIE É SEXY. CONSENTIMENTO É UM DIREITO HUMANO BÁSICO!

  Vocês deveriam ser os adultos que nos inspiram, mas tivemos que amadurecer na sétima série.

  “Humor cura a dor” nós apenas queremos saber que vocês estão rindo CONOSCO. 

  Nós podemos fazer piada com isso porque é nosso para fazer piadas com, de maneira similar a como nossos hematomas são nossos para cutucar, e seus para manter distância.  

A importância dos termos "monossexual" e "bifobia" para o movimento bissexual


(E da própria luta do B - que não significa bicicletas - dentro do LGBT) 

Arte de Bruna Morgan, do Universo em Bolha de Tinta

  Por muito tempo não soube que pessoas como eu existiam, que eu não "precisava escolher um - e melhor que fossem homens!". Depois, não acreditei que minha orientação sexual poderia ser mais do que uma piada, ir além da promiscuidade. Encontrar um movimento organizado - mesmo que pequeno e com sua falta de recortes -, seus espaços seguros; foi-me um marco, uma retomada de fôlego. Eu era válida. E sei que não descrevo apenas minha situação, como a de quase todas as pessoas bissexuais.
  Temos poucos dados sobre nós, os existentes não são agradáveis: a saúde mental das bissexuais está atrás da de lésbicas¹ (com 64% de chance a mais de desenvolver um transtorno alimentar, 37% de sofrer com automutilação e 26% de ter um quadro depressivo), 61% das mulheres bissexuais sofrem violência doméstica – estupro, agressão ou perseguição - de parceiros² (não, essa não vem apenas de homens cisgêneros), e 45% já cogitou ou tentou cometer suicídio³.
  Contudo, é proibido falar em bifobia, assim decidiram algumas feministas lésbicas e heterossexuais ao colocarem sua teoria acima de nossas vivências - o que apesar de invisibilizar, não impede nosso sofrimento.

Foto originalmente publicada no site Bi-sides

“Bifobia não existe, pois não é estrutural. O que você sofre são estilhaços de lesbofobia”

  É inegável que termos específicos dentro da militância trazem visibilidade a determinada pauta além de ajudar a organizar e facilitar o debate. Então por que não seria assim para nós? Precisamos do termo bifobia porque a lesbofobia não nos contempla inteiramente, precisamos de uma palavra que descreva os preconceitos e violências que passamos por sermos bissexuais, e não por nos relacionarmos com uma mulher.
  Mulheres bissexuais sofrem lesbofobia ao serem hostilizadas por beijarem outra moça em público, isso é fato. Mas mulheres bissexuais sofrem bifobia ao serem chamadas de “depósito de DST” ou terem sua orientação sexual tomada como consentimento – uma ideia próxima de “bissexual é só uma vadia, então com bi pode tudo”. Como o conceito de interseccionalidade aponta, existe um sobrecruzamento de opressões.
  A própria bissexualidade vem com uma invisibilidade, desprezo e fetichização características. Os relacionamentos tem maior tendência a serem abusivos. Por essas e outras manifestações bifóbicas, se faz necessário um movimento bissexual.
  Além disso, existir mais debate acerca do termo bifobia – sendo esse problemático por partir de monossexuais que não consideram a vivência de bissexuais antes de dissertar – do que sobre essas situações, já é um pequeno sintoma do iceberg que temos de enfrentar por nossa orientação sexual. E se não é estrutural, por que as estatísticas apontam tamanho sofrimento de pessoas bis?    

Ilustração de Murilo Chibana

"Dizer bifobia implica sofrer por namorar mulher e homem, e heterofobia não existe. Você não apanha por segurar a mão um homem na rua"

  Primeiramente, parem de definir a bissexualidade como o PH neutro entre as monossexualidades. Eu não sofro por ser meio homo e meio hétero, pois não o sou. Eu sofro por ser bissexual, uma orientação à parte e não fundamentada em confusão e promiscuidade.
  Em segundo lugar - e também quebrando a ideia de "privilégio de passabilidade hétero" - não ser incomodado ao andar na rua não é uma eficiente definição de opressão. Uma lésbica tipicamente feminina caminha em paz se estiver acompanhada de um amigo homem na rua - e os lerão como um casal. Um homem cis e heterossexual pode apanhar se sair de batom vermelho. Ele é oprimido?
  Apesar de estar livre de agressão de estranhos, um relacionamento heterossexual não impede a bifobia de se manifestar em minha vida de outras formas. O dito homem me tratando como um troféu e um objeto para realizar suas fantasias sexuais, por exemplo - e não se enganem, toda mulher bissexual ouve comentários dessa visão ao menos uma vez em sua vida. 

Ilustração de Bruna Morgan

"É por se relacionarem com homens que a saúde mental de mulheres bissexuais é pior do que de lésbicas"

  Relacionamentos abusivos não são o único sofrimento de mulheres bissexuais, e parte deles (mesmo que a menor) tem outras mulheres como abusadoras.
  A diferença, talvez esteja em um movimento social ter conquistado maior espaço e visibilidade do que o outro – mesmo que ainda falte uma longa caminhada. Isso permite que algumas mulheres lésbicas ainda perpetuem estereótipos problemáticos sobre a bissexualidade...

Ilustração da página "Devaneios com canela"

"É lesbofóbico questionar lésbicas por não se relacionarem com bissexuais, sendo isso auto-preservação. Não queremos pegar uma DST, sermos trocadas por macho ou beijar uma boca que já chupou pau. Aceitem um não"

  Não se sentir atraído por uma pessoa de determinado grupo do gênero que te atrai, é uma coisa. Desprezar o grupo inteiro é problemático e normalmente justificado em preconceitos/estereótipos – sejam gordes, negres, trans ou bissexuais. Apontar isso é apenas um questionamento do “gosto pessoal”, que você pode ou não aceitar.
  Preciso dizer que doenças sexualmente transmissíveis não ocorrem de modo diferente com pessoas bissexuais? Que traição é questão de caráter? Ou que nem todas as pessoas do mundo são cisgêneras?
  Um outro problema da frase é a linguagem de teor sexual e ofensiva que é diariamente bombardeada à mulheres bissexuais - vinda de dentro e fora do meio LGBT. Não são casos isolados. É todo um sistema pesando em nossas costas, dificultando auto-afirmação, – e que pessoalmente já me trouxe muita angústia.

Ilustração do projeto "Mulheres" de Carol Rosetti

“Dizer monossexual é homo/lesbofóbico. Você está colocando héteros e homossexuais no mesmo saco”

  Bem, sim e não.
  Com o avanço de debates sobre bissexualidade e bifobia, se fez necessário um termo que descrevesse as pessoas que não a experienciam as vivências de bissexuais e de pessoas com outras orientações similares (como pansexualidade e polissexualidade), por se relacionam apenas com um gênero: os monossexuais!
  Assim como dizer “homem cis” não coloca um branco heterossexual como igual um negro gay – estes tem em comum apenas não sofrerem misoginia - monossexual não descreve um grupo homogêneo.
  Debater a opressão de bissexuais nunca foi diminuir a de homossexuais, apenas reconhece-las como distintas.


Projeto fotográfico realizado pelos estudantes de Jornalismo da USP: "Sexualidade e Ignorância"

Bônus: “Paga de coladora de velcro na internet, mas na vida real é pinto pra lá, pinto pra cá”

  Podemos parar de resumir pessoas a genitálias e fiscalizar a sexualidade alheia?
  Perguntar para alguém bissexual “qual você prefere?” “já fez um ménage?” ou dizer “você acabou casando com tal pessoa, sabia que era só hétero/homo querendo chamar atenção” não e diferente de acreditar que uma lésbica deveria ao menos ficar com um homem para ter certeza.
  É bissexualidade. Algumas moças bis vão ter um relacionamento com homens. Outras com mulheres. Nenhuma delas deixa de ser bissexual.
  Bissexual é minha identidade, e não uma questão de opinião, não preciso te mostrar uma carteirinha ou meu histórico de namoros.

Eu não me importo se você considera correto dizer ‘bifobia’ ou ‘preconceito contra bissexuais’, pois para mim nunca foi apenas um conceito teórico e abstrato; é uma realidade diária. 

"A Bíblia dizia Adão e Eva, então eu peguei os dois" -orginal


1.     1.  Pesquisa realizada pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres publicada em 14/01/15 na revista científica “Journal of Public Health”.

2.      2. Pesquisa de 2010 de The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS), que também relata que 41% das mulheres bissexuais entrevistadas já foram estupradas, por parceiros ou não.

3.      3.  Tese de 2011 da Comissão de Direitos Humanos de São Francisco. Homens bissexuais apresentaram uma taxa de 35% de comportamento suicida. 
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Por Bruna Andrade, mulher bissexual

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