Relacionamentos Abusivos


Foto de Yung Cheng Lin
“Se ele te bateu, é porque gosta de você”, a mãe de Mariana sempre dissera. Mulher simples, calorosa, mas rígida. O pai, (pseudo) presente nos jantares - estava sempre trabalhando, sempre cansado –, se mostrava um homem ciumento: reclamava da saia acima do joelho quando a filha a usava e não a deixava conversar com garotos, afinal, Mariana era uma moça de família. A garota deveria agradecê-lo por ser um pai tão preocupado.
  Seu primeiro namoro, aos 15 anos e escondido, foi com o romântico e gentil Luís, que sempre lhe escrevia poesias e adorava beijá-la quando podia – às escondidas na sala de aula, num corredor vazio. Até o dia em que suas mãos escorregaram pelas costas dela até os seios. Mariana congelou. “Está tudo bem, não está?” perguntou como quem não espera uma resposta. O que ela deveria ter feito naquela situação? Era contrário a tudo que lhe ensinaram, contrário à personalidade que o garoto até então mostrara. “Eu acho que está”, ela sussurrava sem confiança. Ali estava, com o rapaz que dizia a amar e ela não o queria. Não daquela forma. Mas o deixou continuar, o deixou seguir em frente, pois não sabia como reagir. E, com o passar do tempo, Luís dizia que ela já não era a mesma Mariana e ela não sabia como responder.
  Não foi seu último relacionamento. Entre as paredes da faculdade estava Carlos Eduardo, com seus olhos azuis charmosos e inteligentes, dizendo-lhe as coisas mais lindas, trazendo rosas quando a buscava para um cineminha – um real cavalheiro. O mesmo Carlos que gritou com ela em seu primeiro pequeno deslize; que a afastou de Rafael, o melhor amigo que supostamente não a abraçava como deveria, ameaçando deixá-la caso não o fizessem; que dizia para não usar aquele vestido, não na frente dos amigos dele; ou que ela apenas queria chamar atenção com aquele batom vermelho. Mas, bem, Carlos crescera vendo o pai agredir a esposa, quem poderia culpa-lo por seu temperamento? E também, o que esperariam dele pelo modo como Mariana fazia tudo errado?
 Mas Cadu era diferente, jamais levantara a mão para ela. Na maioria do tempo era doce e estava certo em dizer que Mariana não podia desistir deles, de toda sua história juntos, por ser sensível demais, por não aguentar a realidade. Então Mariana se esforçava para agradá-lo – tentava ser a esposa gentil, não reclamar – assim evitava os gritos, os insultos na frente dos amigos. Assim os dois podiam viver em paz.
  Mesmo assim, quando Carlos Eduardo saía com os amigos para ir a um barzinho ou jogo de futebol, Mariana se pegava chorando no quarto ou banheiro. Apesar do emprego como advogada, do marido amoroso e da casa dos sonhos. Talvez não apesar da loucura. “São os hormônios da gravidez” qualquer um lhe diria. Quem sabe com os filhos as coisas não mudassem..?
Feito pelo projeto Livre de Abuso
  Marina, provavelmente, jamais perceberia a armadilha em que estava mantida, assim como milhares de mulheres não percebem que, diariamente, somos direcionadas para não reagir às mais diversas formas de abuso.
  Pessoas tóxicas, relacionamentos abusivos. Quem de nós nunca ouviu essas palavras? Acometem pessoas de todos os gêneros, etnias, classe social ou orientação sexual, mas cada minoria funciona como um ponto bônus, um motivo para se silenciar.
  E, por que diabos nós, de uma maneira geral, pensamos sempre no pai de Cadu e nunca no próprio garoto? Diria que as violências sutis nos doutrinam a naturalizar - ou até aceitar - a ideologia por trás das mais evidentes opressões. Como reagir depois de anos em que definiram sua natureza como para não levantar a voz? Te programaram para isso? Eles lhe ensinaram a, nas palavras de Gonzaguinha, “abaixar a cabeça e dizer sempre ‘muito obrigado’”. Ensinaram os homens que devem ser agressivos para manter o controle. E não é criticando as vítimas que transformaremos isso.
  Um relacionamento abusivo é caracterizado por um desiquilíbrio de poder, um lado cresce à medida que o outro se esgota, murcha. Controle, possessividade, agressividade, manipulação e inconstância são conceitos fundamentais para a discussão do tópico, e se tornam tão presentes quanto o nitrogênio do ar, enquanto tudo é romantizado. Vive-se um ciclo abusivo, e o tempo se torna um agravante tanto para a dificuldade de saída quanto para as dinâmicas de relacionamento problemáticas. Os artifícios utilizados para sustentar isso, porém, variam. 

Os Diferentes Tipos de Abuso 


Ciclo da Violência de Waller

Os casos (ainda mais) invisíveis

Men In Abusive Relationships

Apesar de relacionamentos abusivos majoritariamente caracterizarem uma violência de gênero, eles não se limitam ao patriarcado (afinal, pessoas egocêntricas ou obsessivas existem em todo e qualquer grupo).

  Homens no lugar do sobrevivente?! Sim, e às vezes com agressoras mulheres. Isso não deveria causar estranhamento ou chacota, e sim uma mobilização por apoio. Eles têm maior probabilidade de permanecerem calados e dificuldade em encontrar ajuda, afinal, um homem não chora, não pode ser vítima – quem dirá de uma mulher. Parte de nossa luta deve ser por esses moços, que em momento algum são menos válidos.

Problema de casal hétero? Menos ainda. A comunidade LGBT tem suas próprias questões com relacionamentos abusivos, que não devem ser silenciadas e precisariam de um texto inteiro para serem propriamente discutidas. O peso do armário, o medo da solidão e falta de apoio familiar apenas agravam a situação - somatizados a problemas de auto-aversão, invisibilidade e descrença.
  Não é novidade ou surpreendente dizer que o meio gay romantiza relacionamentos abusivos e fetichiza estupro, basta olhar para pornografia ou expressões artísticas. Imersos nessas referências negativas, no mito de que homens homo e bissexuais não buscam algo sério, e assumindo que alertas não passam de implicância, muitos homens não dão a jogos psicológicos ou coação sexual – entre outros – o devido valor e permanecem com parceiros tóxicos.
  Falando em abuso sexual, é quase uma ocorrência de praxe para assexuais em busca de relacionamentos amorosos. Mesmo dentro de um saudável, são acusados de serem os verdadeiros vilões - afinal, como manter um relacionamento sem sexo? E assim como nem todos os assexuais são arromânticos, nem todos não tem interesse em sexo - seja quais forem seus motivos para tal. Todavia, para muitos isso é algo que não os interessa, penoso, que gera repulsa, e só acabam cedendo por pressão do parceiro – “é importante pra mim”, “quem sabe você não muda?” –, cruzando limites que não deveriam (muitos chegam a se sentirem quebrados por não conseguirem se adequar a essa suposta normalidade). O nome disso é estupro.
  Menos discutido ainda ou perceptível quando se está dentro de um são relacionamentos abusivos entre duas mulheres. Sim, acontece. Há uma super valorização do ciúme e do controle, há bifobia, há duas moças que foram socializadas para se culparem por qualquer destrato, acreditarem que o merecem e permanecerem caladas, mas acima de tudo há uma crença de que isso não acontece dentro de relacionamentos lésbicos - que outra mulher, ou uma feminista, não poderia lhe fazer nada de mal. Contudo não é loucura ou exagero, os casos são reais, e é preciso manter os olhos abertos.
  O abismo é ainda mais profundo e banal quando falamos de parceiros abusivos de pessoas transexuais/trangêneras. Em meio à solidão estrutural, a transfobia e exotificação, aos “você só serve para sexo”, a violência e a dificuldade de encontrar suporte muitos acabam se relacionando com parceiros agressivos ou manipuladores por estes respeitarem sua identidade de gênero - talvez nem isso.
  O ponto é: não devemos tratar pessoas abusivas como algo distante de nós, e elas sequer se limitam apenas a relacionamentos amorosos – pode ser um amigo, um parente - apesar de esse ser o foco deste texto.

Sinais de Um Relacionamento Abusivo

"Pare com isso! Pare de fuder com a minha cabeça"
Cena da série britânica Skins (Juventude à Flor da Pele)
  •   Você está com medo: o comportamento do seu parceiro te aflige, você está sempre a espera de uma possível crise, reluta a expor seus desejos e ideias.
  •   Você não consegue pensar sozinha/o, valoriza mais a opinião do outro e/ou o relacionamento te confunde: pensar no relacionamento te faz acreditar que enlouquecestes então optas por não o fazer, apenas concordas com/aceitas a opinião do parceiro, sempre estás errada/o em discussões.
  •   Alertas de amigos e familiares: eles dizem que o relacionamento não está te fazendo bem, ou que você é outra pessoa perto do agressor.
  •   Superioridade: suas opiniões e conquistas são menosprezadas enquanto as do abusador vangloriadas, ele é sempre o correto, diz que você tem sorte por ter alguém tão bom apesar de sua quantidade de defeitos.
  •    Controle: constante observação e pitacos sobre todos os aspectos de sua vida. Você precisa de aprovação para usar certa roupa, ir a tal lugar com alguma pessoa. Mesmo sem proibir explicitamente mostra irritação ou contragosto.
  •   Isolamento: crítica tuas companhias, te afasta deles. Reclama de senhas em suas redes sociais, de você não estar sempre com ele ou precisar de espaço.
  •   Manipulação/chantagem: distorce o que você diz, ameaça partir caso você não cumpra algo, utiliza frases como “se você me amasse faria” (apelo emocional), diz que se mataria sem você.
  •   Não aceita “não”, exige explicações: faz com que você acredite ser incoerente por mudar de ideia, diz que estar em um relacionamento implica um “sim”, insiste em você justificar todas suas decisões. A recíproca não é verdadeira.
  •   Ciúmes/possessividade: não gosta que você fique sozinha/o ou converse com alguém que não ele, fala de você como uma propriedade.
  •   Agressão: alguma vez já usou força contra você.
  •   Humilhação: comparações dolorosas, críticas a tudo que fazes, constantes palestras sobre teus defeitos, te ridiculariza na frente de amigos.
  •   Pune você: se tu cometes um deslize, te priva de algo, relembra constantemente, fica irritado por dias.
  •   Mudanças de humor: rude em um momento, gentil no outro. Agride-te e insulta, mas depois se desculpa incrivelmente arrependido.
  •   Você perdeu sua auto-estima: é muito mais insegura/o desde que estão juntos.
  •   Espera de mais: tem expectativas inatingíveis para você (estéticas, emocionais, comportamentais) e poucas para si, espera que você sempre esteja lá, mas não faz o mesmo.
  •   Negação e memórias emocionais: não reconhece os próprios erros, sempre te silencia com o mesmo evento – um trauma dele, algum erro teu.

"E por que não saem?"


  Terminar qualquer relacionamento amoroso é difícil – até por uma questão fisiológica, já que você está cortando sua fonte de dopamina. Com um parceiro abusivo não é diferente, se não pior.
  Muitas vezes a vítima não percebe ou não acredita no que está acontecendo tamanha a manipulação e o isolamento. O relacionamento inteiro é construído para que o sobrevivente não enxergue uma vida que não uma com o abusador. Mesmo quando percebe, existem inúmeros motivos para não sair de um relacionamento abusivo – amor, esperança de que a pessoa mude, dependência financeira ou emocional, proteger os filhos, medo da violência, vergonha, não querer passar pela burocracia, pressão para um relacionamento perfeito, a fase lua de mel, medo de recriar a própria identidade ou da solidão – e gostar de apanhar/sofrer nunca é um deles.
  Dizer isso ou criticar a pessoa por ter, em primeiro lugar, entrado/permanecido no relacionamento é discurso de culpabilização da vítima e ajuda apenas o agressor. 

Apoio

"Eu posso ter te perdido mas eu ganhei um pedaço de mim" -via

Como se proteger dentro de um relacionamento abusivo 

Se informe sobre o que está acontecendo

Saiba que existem várias pessoas na mesma situação e que não é sua culpa, você não enlouqueceu. Você tem um parceiro abusivo e é possível reduzir os danos. Apreenda a reconhecer os ciclos de abuso e sinais de perigo, para assim poder contornar situações ou saber quando se afastar.

Mantenha sua identidade, se coloque em primeiro lugar

Faça, na medida do possível, coisas que sejam por e para você, se congratulando por isso. Se aproxime de pessoas que não seu parceiro ou encontre um grupo de apoio, exponha suas ideias e problemas. Realize atividades que te deixem feliz, mesmo que pequenas. Repita para si mesma/o pequenas mensagens de positividade, amor próprio e validação. 

Escreva um plano de segurança

Escreva um plano e mantenha-o ao seu alcance. O plano deve conter soluções para crises: certifique-se de ter uma opção de que fazer se o abuso explodir, um lugar para ficar, ideias de como sair do relacionamento. Tenha planos para situações menos emergenciais/emocionais também, como uma atividade para cada comportamento abusivo (ex: ligar para um amigo depois de uma briga, ler uma lista de elogios quando o parceiro te insultar). Identifique suas necessidades e tenha mais de uma alternativa para cada uma delas. Se pergunte coisas como: "como x comportamento me machuca? O que me faria melhorar? Por que é importante cuidar de mim?"

Terminando o relacionamento 

  Decidir terminar com uma pessoa abusiva é um passo importante (e não se sinta mal caso demore a fazê-lo! Nem sempre é uma opção imediata), porém efetuá-lo é talvez o momento mais difícil e o mais libertador. Aceite o que vem acontecendo, pese as coisas em uma balança, se questione “eu gostaria de ver alguém que amo em meu lugar?”, “até onde eu aguento?”.
  Fale com amigos e familiares sobre os ocorridos e suas intenções, certifique-se de que terá com quem contar. Planeje o que dizer se quiser e tente cortar a pessoa o máximo possível de sua vida, não esperando a situação piorar. Lembre-se: você não deve uma explicação, e só porque tem amor não quer dizer que não tenha abuso. Um relacionamento deveria ser algo BOM e A MAIS em sua vida, nunca limitador ou desgastante.
  Também tenha em mente que um agressor muito provavelmente irá piorar após o término e talvez tente insistir; lembre-se que, caso a situação saia de controle, existem diversos recursos legais aos quais você pode recorrer.

Ajuda legal 

  Se a situação coloca sua integridade física em risco, não hesite em procurar a polícia ou uma delegacia. Existem vários Centros Integrados de Apoio à Mulher e delegacias especializadas, que irão te direcionar, ajudar a encontrar abrigo e a se manter. Se pretender confrontar a pessoa no tribunal uma ideia é registrar provas – como uma foto do abuso físico. Não se silencie, disque 180!
(Clique aqui para telefones e endereços das delegacias em cada estado)

E a vontade de voltar?

A maioria dos sobreviventes de um relacionamento abusivo relata um período em que ficaram tristes e se culparam, e uma segunda fase em que perdoavam a pessoa e começavam a sentir falta dos aspectos positivos. O melhor é manter-se ocupada/o (de preferência com lugares e atividades novos) e cercada/o de entes queridos. Eu pessoalmente gostava de rever o vídeo da JoutJout quando me julgava uma louca exagerada, e criei um bloco de anotações que revia durante a vontade de voltar, com as piores coisas que ela me disse/fez e frases que me lembrassem o que passamos (textos como esse, poemas, canções) e só mexi nas lembranças boas quando já conseguia enxergar a situação de fora. 

Superando 

  Não se apresse. Procure um terapeuta, grupo de apoio ou um programa como a CVV (hotline e chat) caso esteja se sentindo muito mal ou confusa/o. Tente se afastar do abusador, cerque-se de pessoas positivas. Coloque seus sentimentos para fora, seja em uma conversa com amigos ou seu psicólogo, se exercitando ou fazendo alguma arte como desenhos e poemas – não se preocupe com qualidade, o importante é não guardar isso dentro de si
  Você já sobreviveu a muitas coisas, vai sobreviver a isso. Você tem o direito de ocupar espaço, de se colocar em primeiro lugar – isso é sobrevivência. E você merece mais do que alguém que não te respeite ou tente compreender. 


"Agora que você está fora de minha vida estou bem melhor. Você pensou que eu ficaria fraca sem você, estou mais forte"
Trecho do vídeo Survivor da Clarice Falcão (cover de Destiny's Child)

Links Úteis

180 - Delegacia da Mulher
141 - CVV

Mais informações

Like us on Facebook

Flickr Images